Possíveis cumes, por Júlio Campanella
O clima rigoroso do extremo sul da Patagônia transforma suas montanhas nevadas e agulhas imponentes, nos locais de escaladas mais difíceis de serem concretizadas. Isso para quem um dia ousar em algum cume pisar.
Lá, a tentativa de ascensão está diretamente relacionada com a experiência e a técnica acumuladas naquele ambiente específico, juntamente com a condição física e mental adaptadas à condições extremas. Só com muita perseverança e sorte, você possuirá a possibilidade de chegar ao cume sonhado e ali contemplar a beleza local. Depois de curtir o visual e recuperar a energia, descer com a experiência no pensamento e o olhar sempre em busca de um ponto seguro para reunir e rapelar com a vontade de se aventurar em novas agulhas patagônicas.
Com muito respeito retornará à Chálten, e lá continuará a busca e a espera por algo que está além de nós, o bom clima e a sorte. O tempo, esse sim, passa de forma rápida, e na velocidade dos ventos o cérebro trabalha imaginando como e quando será a escalada dos sonhos. De acordo com a sua motivação quase tudo acontece: escaladas esportivas, boulders, caminhadas, travessias, novos amigos e parceiros de cordada são formados, mas a Ideal condição climática para tentar a escalada, essa sim é difícil de acontecer. O bom clima aparece com a sorte e, quando chega os escaladores desfrutam de escaladas magníficas, em agulhas graníticas impressionantes que afloram das profundezas do planeta, rompem os glaciares, e com suas perfeitas fissuras rasgam a rocha e levam a energia e nós direto ao cume de encontro ao céu, e com suas arestas afiadas cortam os ventos gelados que trazem a neve, e seguindo a vontade do pintor ”Deus” chapisca o cenário de branco.
Existem dias que nos sentimos acima das nuvens, momentos que merecem ser vividos intensamente para que no futuro não soframos com lamentos. Em outros dias, apenas buscamos ver e sentir o que realmente merece ser vivido e, é assim a busca de quem vive a vida na montanha: ver e sentir para poder viver.
Foram muitos dias de clima péssimo, vários porteios de equipamentos a Pedras Negras e uma ida à base da via Afanassief no Glaciar Norte do Fitz Roy para reconhecer e deixar algumas provisões. O lugar é inóspito e puro, rodeado de imponentes agulhas, que tem seu silêncio quebrado apenas pelos os ventos ou pelo desprendimento de algum elemento do lugar. Até que, depois de algumas tentativas para escalar a Guillaumet (que não passaram do bivaque) nos apareceu uma possível “janela” de bom tempo. Na espreita, eu, Tartari e Pira (um amigo argentino) aproveitamos a oportunidade e esperamos a hora certa de sair da barraca.
Já passava das dez horas da manhã quando contagiados com a motivação de Pira ao perceber que parara de nevar e o vento tinha estabilizado. Saímos em disparada rumo a face leste da agulha Guillaumet para a base da via “Amy”, que era a rota mais indicada naquele momento gelado. Fazia muito frio e a neve estava em ótimas condições, com a rimaya quase toda coberta, assim escalamos toda a canaleta. Ao chegar na aresta que conduz até a rampa de neve final, o vento havia sumido e ao nosso arredor muitas nuvens descarregavam chuva em pontos isolados da estepa. Nesse momento, a dificuldade maior era escalar a rocha gelada sem luva, e desentupir as fendas cheias de gelo para progredir e proteger.
Com muita vontade, sem desperdiçar a oportunidade, chegamos ao cume depois de 40 dias de espera, e muito contentes aproveitamos o momento, por ali estarmos e podermos contemplar o lindo visual dos cumes congelados das agulhas Mermoz e do Fitz Roy e de outras como o Torre, Polone e Pior Giorgio com suas capas de gelo assustadoras que nos vigiavam de forma amigável e aliada ao reter as nuvens que viam da enorme placa de gelo Continental. Parecia que o tempo tinha parado para subirmos e descermos em segurança, pois, ao chegarmos ao bivaque as nuvens encobriram as montanhas, os ventos voltaram e junto veio a neve e o frio tornando o cenário igual aos dias passados.
Já nos sentíamos mais confiantes e entrosados naquele ambiente gelado e na parceria de cordada. Assim, começamos a imaginar como seria escalar o Fitz com as condições invernais do momento. Até que o clima começou a estabilizar e surgiu a primeira “janela” de 3 dias bons, o que resultou numa corrida maluca para as montanhas. Todos os escaladores saíram em busca de realizar seus objetivos, mas devido as condições passadas, cinqüenta dias de clima ruim, poucos obtiveram êxito. Não foi o caso do brasileiro petropolitano Nicolau que lutou como um guerreiro e com sorte chegou ao cume do Fitz pela rota Super Canaleta.
Nós saímos 2 dias antes da “janela” e acampamos no glaciar Norte com o objetivo de conferir os equipamentos na base e depois entrar naquele paredão e subir até aonde satisfizesse nossas cabeças, pois, sabíamos que chegar ao cume seria impossível com tais condições. Quando chegou a hora de escalar o dia estava azul, muito frio e um pouco ventoso, ao sair dos primeiros raios solares no céu iniciamos a via por uma parte cheia de blocos soltos. Na sombra seguimos até encontrarmos com o sol depois do meio dia em um filo. Lá descongelamos nossa motivação, e continuamos a subida por mais algumas cordadas até que desistimos de lutar contra o frio e decidimos descer com a satisfação de ter vivido o momento. Agora, também poderíamos imaginar melhor como seria mais à frente. Mas a realidade nos mostrou, aos poucos, as sequelas do frio que começaram a aparecer em nosso corpo. Sérgio teve princípio de congelamento nos dedos do pé e o Pira falta de sensibilidade nos dedos do pé e eu nos da mão. Nada pior aconteceu, só que para Sérgio esta tentativa consumiu a possibilidade de outra escalada na temporada e agora sem meu amigo e parceiro de cordada o nosso objetivo distanciou-se da realização. Outras escaladas estavam por vir e com o tempo outras cordadas surgiram na minha vida, novas amizades foram conquistadas e antigas foram fortalecidas em Chaltén, outras consolidaram-se nas montanhas.
Depois de alguns dias fui tentar a agulha Mermoz pela rota “argentina”, junto de Valentim e Silvana, dois amigos argentinos que participaram de muitos momentos de descontração e escaladas esportivas. Juntos, decidimos provar aquela gigantesca e imponente parede. Logo no início percebemos que estava tudo congelado e que encontraríamos muita parte mista (rocha e gelo), mas continuamos mesmo ao saber das dificuldades que teríamos pela frente, até o momento que resolvemos descer com todo o conhecimento conquistado ali e felizes de ter vivido mais um dia intenso de escalada na imponente patagônia.
O bom clima firmou e tudo começou a descongelar, aumentou a movimentação dos glaciares e os ventos acalmaram e assim os dias se tornaram mais quentes deixando as aliadas fissuras perfeitamente limpas para nos conduzir ao cume com a mais pura escalada em livre. Assim me juntei a cordada de Pira e Marcus Frischknecht, meu novo amigo argentino, e fomos tentar subir a agulha Saint Exupery pela via “Claro de Luna”, um clássico patagônico. Como um sonho escalamos a rocha em condições perfeitas, com muita determinação chegamos ao cume e descemos até o bivaque, depois de 22hs de atividade física e mental intensa, relaxamos e curtimos a satisfação por ter vivido mais um dia de sorte, onde tudo ocorreu perfeito.
Apesar de estar preparado e adaptado para aquele ambiente começaram a aparecer sinais de desgaste no corpo, pois a cada tentativa ou cume era uma experiência única que custava muito caro ao corpo e a mente. Só que a motivação ainda falava mais alto e alguns dias depois lá estava eu, junto do Mario, um amigo suíço, prontos pra escalar, na base do Pilar Casaroto, pra tentar subir até o cume do Fitz Roy pela via “Mate, Porro e Todo Los Demais”, uma sequência de diedros incríveis e imponentes. A qualidade da rocha e da escalada nos motivaram a superar lances ousados e difíceis que aos poucos consumiram nossas energias, tornando distante a realização do nosso objetivo. O sonho foi interrompido pela dificuldade técnica da via e pela estratégia errada que adotamos. Nossos corpos desgastados e cansados não correspondiam mais com as dificuldades imposta pela natureza, assim resolvemos descer e dormir no glaciar e lá refletir e curtir a última noite nas montanhas.
Assim encerrei minha temporada, com um acumulo de experiência importantíssimo para outros possíveis cumes e feliz por ter conquistado muitos amigos e fortalecido velhas amizades. Mais contente ainda, por ter vivido tudo na medida que o tempo veio a me oferecer e os cumes que realmente vieram a acontecer. Tudo graças a Deus e com ele sigo na minha busca. Também agradeço a todos os amigos que enviaram energia positiva e a GRIMP equipamentos que fortaleceu com material necessário para escalarmos a rocha com muita, muita segurança.
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